Crónica de Mário de Sousa
A tartaruga e a carapaça
O africano animista é dotado de um espírito imaginativo de sentido pragmático que o ajuda a procurar sempre explicar factualmente, a razão de ser das coisas do mundo, o que lhe permite viver de forma racional todas as irracionalidades aparentes que o rodeiam. Assim, a sua miscigenação com a Natureza dá-se de forma natural e simples.
Tive oportunidade de participar nesta forma de viver entre os deuses e a vida real, quando visitei as ilhas Neram N’Dok no Arquipélago dos Bijagós: ilhas de Nago, Sediã e Formosa. Embora tenha visitado as três, a permanência na ilha Formosa permitiu-me perceber como um povo de poucas centenas de indivíduos consegue viver no século XXI seguindo uma liturgia animista talvez milenar, sem choques com a civilização atual. O bijagó orgulha-se de ser ’puro-puro’ e essa sua pureza advir das práticas e cerimónias de sempre, desde que a mulher-mãe, aquela que dá a ‘Vida’, deu início a tudo o que existe. Nesta convicção, criou-se uma sociedade matriarcal que ainda prevalece. É por isso que ainda hoje é a mulher que convida o homem para casar numa cerimónia muito curiosa chamada ‘pega grandeza’, a qual consiste em enviar à família do homem escolhido um grande alguidar cheio ‘lingron’.[i]
Na ilha Formosa ao fim da tarde, é hora de regressar à tabanca. Por essa altura acontecem diversas reuniões de homens e mulheres, cada um em seu grupo, embora seja permitido à mulher visitar um grupo masculino. Porque o meu dia era contemplativo, quando chegava aquela altura em que a noite equatorial começava a afogar o dia, encostava-me nas raízes de um poilão junto à praia a saborear aquele momento sem sombras e tentava contar quantas águas tinha aquele mar, adivinhando-as só pelas cores que refletiam.
Aos poucos ia chegando companhia e o diálogo estendia-se animado conforme o vinho de palma ia circulando. Falava-se que o tarrafo estava com menos ostras, que o peixe tinha fugido para outro mar, que o ‘cambé’ tinha voltado para as águas da Formosa, que se aproximava o dia do casamento de Kantucha. Por vezes, um ancião com um espírito mais místico contava lendas que explicavam de forma simples a razão de ser de qualquer coisa.
Foi num desses fins de tarde e numa ocasião única, que Mossanta se aproximou do grupo de forma vagarosa, ostentando a sua imponência de mulher dançada, peitos bem firmes e cara séria, mas de face agradável, bonita, riscada pelo fogo do sol poente, o que lhe dava uma aura de rainha que em tempos poderia ter sido. Numa das mãos trazia uma pequena tartaruga que colocou no chão à minha frente. Sentou-se na roda e disse: vou-te contar o que aconteceu há muito tempo à tartaruga para ter carapaça e espreitar do mar antes de vir para terra. Fiquei em suspenso da sua voz. Mossanta respirou fundo, semicerrou os olhos e começou a falar soprando as palavras baixinho, num mescla de crioulo e português:
“Certa vez, uma tartaruga desorientada, em demanda do mar, errava pela floresta virgem de esguias palmeiras. Sem dar por isso, foi ter a uma clareira perdida no mato, onde, de forma passiva, os ‘cabaros’[ii] se encontravam a ‘bater grandeza’[iii], suportando sem um gemido as vergastadas aplicadas pelos grandes e veteranos.
A presença profana da intrusa tartaruga no local só reservado a determinadas classes de idade[iv], provocou, como não podia deixar de ser, o descontentamento e a senha dos homens, que resolveram sujeitar o intruso animal à dura prova. Este, que até àquela altura vivera sem carapaça, sentiu calafrios provocados por um enorme medo de se ver assim indefesa, ao invés dos ‘calabros’ que cobriam a cabeça com chapéus de palha feitos de fibras resistentes e escondiam o corpo com os braços envoltos em mangas de bambus.
Aflito, o animal teve a feliz ideia de se servir, em defensiva, de um grande ‘tacho de tagarra’[v] que lhe estava à mão, cobrindo o dorso, enquanto precipitadamente, se lançava ao mar.”
Mossanta calou-se. Encheu o peito de ar e terminou:
“Assim se justifica a razão da carapaça. E é por isso que a tartaruga, põe a cabeça fora antes de nadar para terra, para ver se descortina na praia, aqueles ‘grandes’ que a sovaram e perseguiram até ao mar.”
Ofereceu-me um sorriso, pegou na tartaruga e abandonou o círculo regressando à tabanca. O grupo desfez-se e eu fiquei ali sozinho, agora já mergulhado num luar deslumbrante, a refletir na estória e na Mossanta, fascinado pela sua forma gentia de ser e de viver.
Tinha contado uma lenda? Teria inventado tudo aquilo? Pensei nas voltas que a evolução deu para que as tartarugas tivessem casca Era óbvio que a tartaruga põe a cabeça de fora de água para respirar, mas que encanto tinha aquela explicação tão singela, tão simples dada por uma bijagó cujo mundo lhe permitia ver a Natureza com olhos animistas. Não podia deixar de ser genuinamente feliz. Tenho saudades de Mossanta.
Mafra, 13 de Outubro de 2022
Mário de Sousa
[i] Lingron é um bivalve semelhante ao berbigão, mas maior, com uma concha branca e castanha muito brilhante. Vive nos lodos do tarrafo e é de difícil apanha o que lhe dá muito valor.
[ii] Cabaro ou Kabaro – Rapaz próximo da passagem à idade adulta.
[iii] Uma das duas cerimónias de passagem à idade adulta dos rapazes na tradição bijagó que consiste na absoluta submissão dos iniciados a sucessivas vergastadas brutalmente aplicadas pelos grandes , veteranos e anciãos.
[iv] Na cultura bijagó existem sete classes de idades entre os rapazes: a primeira os mais pequenos são os Kadeningas, depois os Kanhokans,. Quando entram na puberdade passam a Kabaros. Com a entrada na idade adulta passam a Kamabis, Ododos e por fim a Kabon’as. Para cada passagem de classe existe uma cerimónia específica.
[v] Tacho feito de madeira da parte lisa do poilão. A madeira desta árvore por ser muito dura é utilizada no fabrico de muitos utensílios de uso diário, principalmente na cozinha.